segunda-feira, 6 de abril de 2009

"Acidente"

Reyem era um velho astuto e um tanto quadrado. Seus paletós, sempre de cores pálidas e tons pastel, com ombreiras largas e mangas mais longas do que deveriam, mostravam sua excentricidade e loucura caminhando juntas todo o tempo.
Seus olhos carregados de ceticismo e sua longa e enrrugada testa mostravam traços de sua maneira de ver as coisas.

Eu podia sentir uma energia pesada emanando de seus retos ombros e repousando sobre os meus. Fingi não sentir nada, encarei-o com olhos perfurantes e esbocei um leve e torto sorriso, sádico e desafiador.
Seus olhos ficaram em chamas e sua boca me respondeu com um largo e intimidador sorriso de lado a lado de seu longilíneo rosto idoso. Curvei-me um pouco, preparando-me para um possível impacto e travei minhas mãos em punho. Ele levantou a cabeça enquanto aspirava todo o ar da sala para dentro de seus pulmões, estufando o peito e me encarando, agora de cima, mais imponente e aparentemente forte do que antes.
O sorriso largo continuava ali, me desafiando a partir pra cima daquele velhote com todas as minhas forças, mas não. Eu não podia me render a este desafio, pois era exatamente isso que Reyem queria, que eu atacasse primeiro, para que ele pudesse me pegar com a guarda baixa.

Esperei. Ele arriscou um passo, olhou para o próprio pé e voltou, balançando a cabeça "Heh heh heh... Se pensa que vou me entregar assim, tão fácil, está enganado, pirralho!" - cuspiu ele por entre os dentes, tentando me fazer ficar cego de ódio -. Como num piscar de olhos, eu havia saltado e estava agarrado ao pescoço rugoso daquele monte de vermes, com uma expressão psicótica no rosto e meus pés apoiados sobre o seu tórax. Nos derrubei ao chão. Sacodindo seu colarinho e ajoelhando sobre seu peito, joguei todo o meu peso sobre ele, que soltou um "Blahg!" de pânico e esbugalhou os olhos.

Fiquei de pé, minha cabeça entre os ombros, dentes cerrados e olhos flamejantes. Estávamos ofegantes, cada um por seu motivo particular. Eu por estar louco para matá-lo e ele por... "Eu não... imaginava que você... pudesse ser tão... ágil... pivete..." ...estar assustado, é claro.
Suspirei e regulei minha respiração. Me segurando para não voar pra cima dele novamente, perguntei "E aí, velhote, já é o suficiente? Desiste?" Ele olhou para baixo, suspirou e me encarou novamente, agora com olhar de desgosto.
-Não vou pagar os dois mil que lhe devo, pivete. Não adianta ficar esmolando... - disse ele ríspidamente -
-Esmolando? Quem aqui está esmolando? Eu não quero saber se você pretende ou não me pagar. Você VAI me pagar... - ameacei -

Havia uma poça de gasolina ao meu lado. Talvez de um carro que estivera ali há algum tempo. Tive uma idéia.
-Ei! Venha cá. - chamei-o levantando as mãos e mostrando-lhe que não estava planejando machucá-lo naquele momento -
O velho veio até mim, apreensivo, fitando-me nos olhos com uma ponta de medo no rosto.
-O que quer, garoto? - perguntou -
-Você não pretende me pagar, certo? - retruquei -
-Não.
-Você tem o dinheiro?
-T-Tenho, mas...
-Mas o que?! Não quer me pagar, não é? - levantei a voz -
-Exatamente. Não vou lhe pagar, não importa o quanto me irrite para que eu o faça.
Triste erro Reyem.
-Então está bem. Se não quer me pagar, não tem problema. Afinal, eram só duas mil pratas! - gargalhamos - Venha cá meu caro Reyem, me dê um abraço!
O velho Reyem chegou ainda mais perto e abriu os braços devagar, colocando-os envolta do meu casaco. Abracei-o por um segundo e então girei meu corpo e o joguei, por cima de meus ombros, de costas na poça de gasolina. Reyem gemeu de dor e logo se levantou, me observando assustado e ainda surpreendido.
-P-Pivete! Desgraçado! - gritou -
-É tudo o que tem a dizer, Reyem? -provoquei-o, querendo que se aproximasse de novo-
-Como pude me deixar levar pela sua conversa?! - Reyem pegou de seu bolso um canivete suíço, dos grandes, e começou a tentar abrir uma das lâminas -
-Hmmm... Interessante. O que pretende fazer com isso, múmia?
-E-Eu vou... T-Te matar, pirralho! Assim que eu conseg--
Pulei pra cima dele, jogando-o alguns passos para trás e fazendo com que derrubasse o canivete no chão. Saquei meu isqueiro, olhei para ele, que agora estava mais confuso e surpreendido que antes, e abri um sorriso sádico enquanto passava minha língüa entre meus dentes e umidecia meus lábios de forma desafiadora.
Ascendi o isqueiro e parti pra cima dele, que estava petrificado tentando entender o que estava acontecendo. Seu paletó se imflamou num piscar de olhos. O velho agora estava em chamas, rolava no chão desesperadamente para tentar se livrar do fogo, mas isso só piorou a situação, pois num determinado momento, ele rolou para a poça de gasolina em que caira antes.
-Aquela dívida, assim como você, durou tempo demais, Reyem... Tempo demais...

Acendi meu último cigarro e fui para a Avenida Leste, onde Bernard me aguardava em seu escritório com um copo de café e batatas fritas amanhecidas.
Bati à sua porta e ele a abriu. Estava com os cabelos oleosos bagunçados, gravata frouxa e, além de aparentar ter acabado de acordar de um longo cochilo sobre os papéis em sua mesa, emanava um sutil cheiro de mofo dos seus "sapatos da sorte".
-Olá, Max...! - disse ele, devagar, ainda confuso por ter sido acordado pela porta às quatro e quinze da manhã -
-Me desculpe, Bernard. Mas vim buscar meu pagamento. Já me livrei do Reyem. - informei-o -
-Foi mais rápido do que o esperado.
-Eu lhe avisei que não demoraria... Acredita que o velhote nem notou que não era você? Abriu o jogo logo de cara.
-Hahahaha! - ele riu - Meu pai estava mesmo ficando louco... Velho caduco! Hehehehe...

Me levantei da velha cadeira em que havia sentado e estendi a mão para uma breve despedida. Bernard levantou-se logo em seguida e apertou minha mão com força, expressando confiança em meu trabalho pela primeira vez.
Saí do escritório enquanto vestia meu sobretudo e pegava o pacote de cigarros do bolso.

-Ah, vazio... - lembrei-me -

Em dois dias, recebi o pagamento pelo trabalho e Bernard me ligou, pedindo para que eu o encontrasse na Loja de Tortas Skiller naquela noite.
-É, parece que hoje teremos mais um "acidente"...