segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Pássaros

Marcel estava observando seus papéis sob aquela luz amarelada que entrava pela janela de seu gabinete. Parecia cansado. Passou uma das mãos no curto e bagunçado cabelo, e bufou. Olhando para a janela, deixou seus pensamentos fluírem e depois voltou a si. Levantou-se da cadeira de madeira-do-campo e saiu do quarto em busca de um copo d'água. Voltou com as mãos vazias e procurou por seu relógio de mesa, atrás dos papéis. Após retirar duas ou três folhas dali, viu que o relógio marcava quinze para as seis da tarde.
Como se estivesse atrasado para algo, arrancou a máquina de escrever de cima da mesa, levando junto os papéis que encima dela repousavam. Enfiou-a de baixo do braço e saiu da casa batendo a porta atrás de si.

Andou até um parque. Os pássaros, aprumando-se entre as árvores naquele entardecer fresco e colorido, se perguntavam o que aquele homem, aparentemente cansado, fazia, sentado na grama com uma máquina de escrever a sua frente.
Foi então que Marcel, após alguns segundos com o dedo indicador sob o queixo, refletindo, resolveu começar a escrever. Digitou algumas poucas teclas, cujo som se misturava aos piados e bater de asas e folhas das árvores ao seu redor.

"Pássaros" murmurou ele para si. Era isso que havia escrito até agora. Pássaros. Uma única palavra, seguida do silencioso tom branco daquela folha presa à máquina de escrever.
O tempo ficara mais frio. O céu, cada vez mais escuro, começava a mostrar algumas estrelas, dispostas como as pérolas de um colar arrebentado. Marcel as encarou por alguns instantes...

Deitou-se na grama e deu um longo suspiro, fechando os olhos e relaxando o corpo.
Então uma borboleta veio voando suavemente até bem perto de seu rosto e, depois de circular um pouco, pousou em seu nariz. Ele não sentiu. Não sentiu, pois já estava em outro lugar. Seu corpo continuava ali, mas Marcel caminhava para dentro de um sonho. Um sonho que parecia amplo e agradável.

Olhava para um ponto fixo a sua frente, entre o chão e o teto, com um olhar relaxado. Não sabia dizer se o que olhava era uma parede, ou se era o vazio, algo como o infinito.
Ele estava entre duas paredes. Era um longo corredor, com uma janela em algum ponto, por onde entrava uma luz calma e alaranjada. Por algum motivo, Marcel andava em direção a ela. Passava por tapetes com belos padrões de vermelho e dourado. Detalhes em azul real, mas nada muito chamativo. A janela se aproximara.
Antes de tocar a luz que entrava pela janela, Marcel parou. Moveu um pouco sua cabeça para o lado, levando seus olhos até a janela, com esperanças de ver o que emitia aquela luz tão agradável. Deu mais um passo e, sendo envolto por aquela luminosidade alaranjada, olhou para fora.

Seus olhos ficaram petrificados e uma expressão de pânico tomou conta de seu rosto suave.


O que Marcel vira, não era algo agradável como aquela luz, não era algo suave ou calmo, tampouco confortador. A janela mostrou a Marcel que ele estava em algum lugar muito alto. Alto o suficiente para ver todas as casas de seu bairro e mais algumas dos bairros vizinhos. Seus olhos começavam a se mover, lágrimas saltaram para suas bochechas e sua boca se apertou.

Marcel via quase toda a cidade por aquela janela. E a janela lhe mostrou fogo, caos e destruição. Tudo o que ele via ou já havia visto, agora estava em chamas. Mas Marcel viu mais do que a cidade... Viu suas memórias, suas lembranças e seus planos, sendo destruídos. Consumidos pelo fogo.
Ele desabou, sentando-se no chão como um boneco de pano jogado por uma criança descuidada. Mas a janela continuava à sua frente. Ela o acompanhou até onde estava, e mesmo sentado, ele continuava a ver aquilo.
Um corvo surgiu lá fora, do outro lado da janela, e fitou o rosto de Marcel com seus olhos vermelhos. O brilho escarlate daqueles olhos fez com que Marcel encolhesse seus braços sobre o peito e gemesse. Gemeu por um sentimento misto de ódio e culpa, infelicidade e desdém.

De repente, acordou, ainda no parque. O sol estava nascendo e ele percebeu que passara toda a noite ali. Levantou-se e pegou sua máquina de escrever. Notou que seu papel, onde havia escrito "pássaros", não estava mais lá. Deu de ombros e seguiu para casa.
Antes de entrar, notou que um corvo grasnava sobre um dos galhos do salgueiro na frente de sua casa.
Fechou a porta, subiu alguns degraus até seu quarto, chegou à porta do mesmo e, para sua surpresa, seu quarto não estava lá. Em seu lugar, estava um corredor. Mas não um corredor qualquer, aquele corredor, onde uma calma luz reinava.

sábado, 11 de julho de 2009

Pesadelo

Ele olhou pelo vidro da janela mal iluminada pela noite que acabara de chegar e, por entre as árvores do bosque à sua frente, pôde ver a luz amarelada da lua que subia no céu enegrecido.
Abriu a janela e pôs sua cabeça e ombros para fora, numa tentativa de ver com mais clareza o que estava diante de seus olhos. Ajeitou os óculos e inspirou todo aquele ar calmo que ali pairava. Fitou a lua cheia que o encarava por alguns instantes, distraindo-se um pouco com a beleza daquela jovem noite e ouvindo o silêncio daquele momento.Abotoou a gola de sua camisa e enroscou sua gravata vermelho sangue envolta do colarinho, suspirou e fechou a persiana delicadamente, emendando o movimento no nó da gravata.

- Está uma bela noite hoje, não acha? - perguntou-se ao espelho, largando um leve sorriso torto para si mesmo, como quem achara algo ridículo. Saiu da frente do espelho e foi até o armário, pegou seu paletó e o vestiu. Deu alguns passos para o lado, não mais que dois ou três, e chegou à porta do apartamento. Quando estava prestes a fechar a porta de seu pequeno apartamento, quase num sobressalto, voltou e estendeu sua mão direita até a mesa de jantar para pegar o molho de chaves, com a chave do carro. Fechou a porta e trancou-a.

Desceu as escadas cantarolando uma melodia descompassada e ao mesmo tempo alegre e rouca, acompanhando o ritmo de seus sapatos nos degraus de madeira.
Ao sair pela estreita porta do curto e amarelo hall, Roger deu alguns passos até quase à esquina e então lembrou-se de que havia deixado seu carro alguns quarteirões abaixo. Tirou o paletó e o pendurou em seu ombro esquerdo, sacudindo as chaves em uma das mãos e voltando a cantarolar enquanto descia a escura rua, deixando seu apertado apartamento, num prédio antigo de três andares na rua 58, para trás.

Era mesmo uma bela noite. Fresca, agradável e principalmente silenciosa. Roger gostava do silêncio - apesar de quase sempre quebrá-lo com algum esbarrão numa mesa de centro ou cantarolando alto demais - e, definitivamente, adorava a noite. As de lua cheia eram suas preferidas. Davam-lhe energia e renovavam suas forças. Pelo menos era isso que ele costumava dizer para si mesmo.

Chegara numa parte escura da rua, no fim da ladeira, onde apenas se ouvia o som de um gato fuçando o lixo e o som de uma tv, bem baixo, que saia de uma pequena janela à sua esquerda. Ele parou um instante, observando o muro no fim daquela rua sem saída, forçando um pouco os olhos para observar além da névoa na penumbra. Embora aquele tipo de lugar não lhe agradasse, ele sempre deixava o carro ali, pois imaginava ser seguro e "escondido dos ladrões". Viu o reflexo da longínqua lua no pára-brisa de seu carro, perto do muro, e então avançou em sua direção, dando mais alguns passos.

Agora podia ouvir um leve tilintar surgindo ao longe. Ignorou-o e continuou em direção ao carro. O som se aproximara, agora podia perceber que vinha por trás. Manteve seu ritmo, respirando fundo e vestindo o paletó sem parar de andar. O som não parava e nem diminuía, apenas se aproximava, cada vez mais rápido. Foi então que, a curtos cinco passos da porta de seu carro, ele parou.
O tilintar continuou em sua direção, mais intenso do que antes, ele se virou. Para sua própria surpresa, viu que nada havia ali. O tilintar parou um instante e Roger voltou-se para o carro novamente, dando de encontro com uma mulher sorridente e muito pálida. Ele se engasgou num suspiro de medo repentino, mas soltou todo o ar com alívio ao perceber que se tratava de alguém, aparentemente, amigável.
- O-oi, moça. - disse ele de forma envergonhada.
- Suas chaves, você as deixou cair. - retrucou ela, com uma voz macia, estendendo um molho de chaves na direção dele.
Roger olhou com desconfiança para as chaves e depois olhou para trás, surpreso por não ter percebido que as tinha deixado parar trás. Pegou-as e colocou no bolso do paletó.
- Obrigado pela gentileza. disse sorrindo.
- Não tem de quê. - respondeu a mulher, colocando seus braços atrás da cintura e assentindo com a cabeça.

Roger piscou, enquanto se preparava para perguntar de onde a bela mulher havia surgido, mas quando abriu os olhos ela já não estava mais lá.
A impressão que lhe passou pela cabeça era a de que ela nunca havia estado ali, já que não conseguia pensar numa maneira tão rápida para uma pessoa desaparecer de sua frente sem que ele percebesse. Apalpou o bolso do paletó e sentiu um volume desigual, notando que as chaves que ela lhe entregara estavam mesmo ali.
- Está bem, eu devo ter passado mais tempo com os olhos fechados do que pensei... - murmurou, conformando-se.
Deu mais alguns passos e chegou à porta de seu velho e mal-tratado Mustang. Enfiou a mão no bolso da calça, pegou as chaves e enfiou a chave do carro na arranhada porta vermelha desbotada. Parou por um instante, petrificado, antes de girar a chave, movendo seu outro braço pelo paletó e chegando ao bolso do mesmo, com um volume desigual, como antes. Soltou a chave na porta e pegou o molho do bolso do paletó, olhando com estranheza para aquelas chaves reluzentes. Escolheu a chave do carro, retirou a que estava na porta e colocou esta em seu lugar.

Ela entrou, girou, e abriu a porta do carro. Roger ficou realmente surpreso, olhando para a parte da rua onde seu estranho encontro ocorrera, ainda com dúvidas de que aquilo fosse real. Franziu a testa e entrou no carro, com os dois molhos de chaves nas mãos, olhando para ambos com uma grande expressão de surpresa no rosto.
- Isso não pode estar acontecendo. Eu nem tenho cópias destas chaves! - contou ele ao vazio. Sacudiu as chaves perto dos ouvidos, com esperança de que o molho de chaves "imaginárias" não tilintasse. Mas ambos tilintaram e quando abaixou as mãos novamente, estava apenas com um dos molhos em sua posse. Ficou perplexo.
- Eu não posso estar tendo alucinações... Não é possível! Eu nunca usei drogas e não me lembro de ter comido algo estragado nos últimos dias... - raciocinou em voz alta. De fato, ele não havia comido nada estragado nos últimos três meses, depois da longa noite que passara no banheiro por ter encarado um copo de leite de cheiro duvidoso antes de se deitar. Aquilo não podia ser uma alucinação, ele tinha certeza de que tinha aberto a porta do carro com a chave que a estranha mulher lhe dera.
Escorregou no assento com suas costas e suspirou, tentando entender o que era aquilo.

Alguns minutos mais tarde, ouviu um ronco de motor e abriu os olhos. Ele estava em movimento, demorou um pouco para perceber que estava num carro que se movia em alta velocidade, mas percebeu rápido que ele estava no banco do motorista, não havia chave no contato e mais ninguém no carro.
Estava em alguma avenida, muito movimentada, e correndo na contra-mão. Se pôs sentado no banco e agarrou ao volante, tentando controlar o carro, e pisoteou inutilmente os pedais. O carro não lhe obedecia e aumentava cada vez mais a velocidade, desviando por pouco de carros e caminhões. Roger começou a gritar, desesperado, e a bater no volante, como uma criança chorona pedindo atenção insistentemente.

Num determinado momento, notou que estava descendo a rua onde havia estado quando adormecera, agora numa velocidade menor, e sem carros e caminhões por todos os lados. A rua estava vazia, como de costume, a não ser pelo fato de um homem magro e alto andando no meio dela, com cabelo longo e um paletó no ombro.
O carro estava andando bem devagar agora, quase na velocidade normal de uma pessoa à pé. Roger olhou pela janela do carro, agora conformado por ele estar se movendo sozinho, e pôde ver que o homem que andava ao seu lado, na rua, era muito parecido com alguém que ele conhecia. Estreitou os olhos e então esbugalhou-os, batendo suas costas no banco do carro e arfando, surpreso, ao ajeitar seus óculos de volta no rosto.
O homem, do lado de fora do carro, era o próprio Roger, cantarolando e desatento, como sempre. O carro passou pelo homem e Roger olhou para suas próprias mãos, tentando identificar se estava no corpo certo. Olhou pelo retrovisor e se identificou no reflexo do mesmo. Torceu seu pescoço ao olhar para traz, na busca da visão do homem na rua, mas nada encontrou. Não via nem o homem, nem a rua, nem a noite, muito menos a lua. Estava tudo branco, como uma folha de papel nova, e sua luz branca era fraca, porém agradável. Dava-lhe uma sensação de conforto.
Roger suspirou, aliviado, mesmo não entendendo o que havia se passado, mas por haver apenas um dele agora. Agarrou-se ao volante e apoiou a testa nele, fechando os olhos com força e tentando entender tudo aquilo de novo.

Então ouviu um insistente e incrivelmente irritante som de campainha, estridente, ecoando por seu cérebro e lhe deixando atordoado.
Abriu os olhos e viu o teto cinzento de seu quarto, olhou para o lado de fora da cama e se deparou com a fonte do som irritante, um relógio amarelado, marcando 5:00. Bateu nele com uma de suas mãos e então o som parou, aliviando-o da sensação atordoante. Gemeu por ser o início de um longo dia de trabalho na fábrica GOOBLES - Produtos de Limpeza, e se levantou bocejando.

Foi até o espelho do banheiro, analisar seu rosto amassado pela noite. Pegou os óculos que estavam na beira da pia e os colocou no rosto, podendo enxergar melhor seu reflexo. Tirou-os, esfregou os olhos, colocou-os de novo. Olhou para o espelho, dando duas longas piscadas e depois para seu tórax e pernas. Não conseguia acreditar no que via. Aquele não era ele, aquele homem gordinho, baixo e careca, definitivamente não podia ser ele!
Roger deu um longo grito de pavor de frente ao espelho, até seus pulmões murcharem e, então, pulou da cama, arfando, como quem volta de um profundo mergulho. Tateando seu rosto, cabeça e ombros, olhou para o relógio, que marcava 2:17 e suspirou aliviado, indo até o espelho do banheiro...

sábado, 13 de junho de 2009

Frio Como Aço

Estava muito escuro, o ar estava seco, o chão frio, e eu percebi que estava descalço.
Não podia ver nada, apenas ouvia um zumbido alto e grave, como o de uma grande turbina ligada, que ecoava por todo o local. Não sei se vinha de cima ou de baixo de meus pés, mas parecia vir de dentro de mim.
Andei, com cuidado, pelo o que parecia um grande galpão, até chegar a uma parede e percorrer parte dela com as pontas dos dedos, percebendo uma parte mais fria, de vidro, que formava alguns quadrados gélidos. Era uma janela, igualmente escura, como todo o galpão. Me aproximei dela e tentei ver algo. O máximo que pude notar foi que esta janela parecia selada por uma placa que impedia a entrada de luz.

Dei alguns passos para trás, e sentei-me ao chão. Eu não sabia onde estava, nem como havia chegado ali, apenas que estava angustiado e com frio. Me abracei, numa tentativa frustrada de me aconchegar e esfreguei minhas mãos sobre os ombros, causando um leve calafrio. Cantarolei uma baixa e desafinada cantiga que me parecia familiar, mas eu não sabia a letra.
Minha cabeça não parava, pensei nos motivos para estar ali, naquele lugar escuro e desagradável. Só conseguia me lembrar de ter passado por uma viela mal iluminada, cuja única lâmpada, no alto de um poste torto, piscava de forma tenebrosa. Aquela imagem me embrulhou o estômago, então resolvi pensar em coisas boas. Lembrei de um sábado ensolarado em que fui acordado pela luz do sol, que entrava pela janela de meu quarto, esquentando meus braços. Levantei irritado e fechei a persiana, reclamando e indo para a sala, branca, clara e agradavelmente fria, assistir TV. Lembro-me daquele dia como num sonho. Eu sempre gostei de frio. O calor sempre me irritava e me forçava a mudar de banco no parque... Mas hoje o frio era demais. Estava me irritando tanto quanto o calor do Sol a pino. Eu não conseguia me aquecer e estava começando a ficar com fome.
O zumbido já avia sido ignorado há alguns minutos, ou horas, não sei quanto tempo eu ficara ali sentado.

Decidi levantar, e fui tateando um caminho seguro até encontrar uma parede diferente, parecia feita de madeira. Era um grande caixote. Forcei suas laterais em minha direção algumas vezes, tentando abri-lo, mas não consegui. A angústia por estar ali já havia passado um pouco, mas a dúvida permanecia.
Meus olhos ardiam, talvez eu tivesse dormido demais. Quanto tempo será que estive desacordado?
Minhas mãos, frias e trêmulas, encontraram meu rosto quente e úmido. Eu estava chorando e não havia percebido até então.

O zumbido cessou e pude ouvir um som parecido com o de metal batendo contra metal e então, o chão me jogou alguns centímetros para cima, teria sido um terremoto? Parecia mais que alguém tinha jogado minha enorme caixa escura e fria no chão, cansado de brincar com ela. Meu coração havia disparado e minha respiração estava ofegante.
Agora estava tudo silencioso. Silencioso demais, eu diria. Fiquei com medo de algo estranho aparecer das sombras e me machucar, então me encolhi como uma bola, cruzando os braços sobre os joelhos e escondendo meio rosto em baixo deles, deixando apenas os olhos à mostra, na esperança de enxergar algo nas trevas. Depois de algum tempo com os olhos abertos e perdidos no escuro, comecei a ver pontos coloridos dançando na minha frente. O ponto vermelho parecia frenético, enquanto o azul e o verde apenas giravam lentamente formando espirais em torno do vermelho. Notei que estava delirando, pisquei algumas vezes, reanimando meus olhos e voltando a mim.

Pude ouvir um eco vindo do lado esquerdo, como o de uma porta de aço sendo destrancada. Me levantei prontamente, fazendo-me lembrar do chão frio, e gritei "Alguém aí?!"
Só ouvi o eco de minha voz repetindo "Aí...aí...aí...". Sentei-me de novo, tentando acertar o mesmo lugar de antes, que agora tinha sido aquecido por meu corpo. Assim que me acomodei, ouvi novamente o som da porta, mas agora uma forte luz branca vinha em minha direção, ofuscando qualquer possibilidade de que meus olhos acostumados com a escuridão pudessem ver algo. Tentei levantar, mas minhas pernas não me aguentaram dessa vez e, talvez por ter levantado rápido demais, minha cabeça rodou. Pude sentir que caia num tipo de chão diferente. Era macio e quente...

Meus braços estavam fervendo e eu pude abrir os olhos de novo. Levantei, bufando, e fechei a persiana. Fui para a sala, sentei no sofá de couro cor de creme, gelado do jeito que eu gostava, e liguei a TV.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

"Acidente"

Reyem era um velho astuto e um tanto quadrado. Seus paletós, sempre de cores pálidas e tons pastel, com ombreiras largas e mangas mais longas do que deveriam, mostravam sua excentricidade e loucura caminhando juntas todo o tempo.
Seus olhos carregados de ceticismo e sua longa e enrrugada testa mostravam traços de sua maneira de ver as coisas.

Eu podia sentir uma energia pesada emanando de seus retos ombros e repousando sobre os meus. Fingi não sentir nada, encarei-o com olhos perfurantes e esbocei um leve e torto sorriso, sádico e desafiador.
Seus olhos ficaram em chamas e sua boca me respondeu com um largo e intimidador sorriso de lado a lado de seu longilíneo rosto idoso. Curvei-me um pouco, preparando-me para um possível impacto e travei minhas mãos em punho. Ele levantou a cabeça enquanto aspirava todo o ar da sala para dentro de seus pulmões, estufando o peito e me encarando, agora de cima, mais imponente e aparentemente forte do que antes.
O sorriso largo continuava ali, me desafiando a partir pra cima daquele velhote com todas as minhas forças, mas não. Eu não podia me render a este desafio, pois era exatamente isso que Reyem queria, que eu atacasse primeiro, para que ele pudesse me pegar com a guarda baixa.

Esperei. Ele arriscou um passo, olhou para o próprio pé e voltou, balançando a cabeça "Heh heh heh... Se pensa que vou me entregar assim, tão fácil, está enganado, pirralho!" - cuspiu ele por entre os dentes, tentando me fazer ficar cego de ódio -. Como num piscar de olhos, eu havia saltado e estava agarrado ao pescoço rugoso daquele monte de vermes, com uma expressão psicótica no rosto e meus pés apoiados sobre o seu tórax. Nos derrubei ao chão. Sacodindo seu colarinho e ajoelhando sobre seu peito, joguei todo o meu peso sobre ele, que soltou um "Blahg!" de pânico e esbugalhou os olhos.

Fiquei de pé, minha cabeça entre os ombros, dentes cerrados e olhos flamejantes. Estávamos ofegantes, cada um por seu motivo particular. Eu por estar louco para matá-lo e ele por... "Eu não... imaginava que você... pudesse ser tão... ágil... pivete..." ...estar assustado, é claro.
Suspirei e regulei minha respiração. Me segurando para não voar pra cima dele novamente, perguntei "E aí, velhote, já é o suficiente? Desiste?" Ele olhou para baixo, suspirou e me encarou novamente, agora com olhar de desgosto.
-Não vou pagar os dois mil que lhe devo, pivete. Não adianta ficar esmolando... - disse ele ríspidamente -
-Esmolando? Quem aqui está esmolando? Eu não quero saber se você pretende ou não me pagar. Você VAI me pagar... - ameacei -

Havia uma poça de gasolina ao meu lado. Talvez de um carro que estivera ali há algum tempo. Tive uma idéia.
-Ei! Venha cá. - chamei-o levantando as mãos e mostrando-lhe que não estava planejando machucá-lo naquele momento -
O velho veio até mim, apreensivo, fitando-me nos olhos com uma ponta de medo no rosto.
-O que quer, garoto? - perguntou -
-Você não pretende me pagar, certo? - retruquei -
-Não.
-Você tem o dinheiro?
-T-Tenho, mas...
-Mas o que?! Não quer me pagar, não é? - levantei a voz -
-Exatamente. Não vou lhe pagar, não importa o quanto me irrite para que eu o faça.
Triste erro Reyem.
-Então está bem. Se não quer me pagar, não tem problema. Afinal, eram só duas mil pratas! - gargalhamos - Venha cá meu caro Reyem, me dê um abraço!
O velho Reyem chegou ainda mais perto e abriu os braços devagar, colocando-os envolta do meu casaco. Abracei-o por um segundo e então girei meu corpo e o joguei, por cima de meus ombros, de costas na poça de gasolina. Reyem gemeu de dor e logo se levantou, me observando assustado e ainda surpreendido.
-P-Pivete! Desgraçado! - gritou -
-É tudo o que tem a dizer, Reyem? -provoquei-o, querendo que se aproximasse de novo-
-Como pude me deixar levar pela sua conversa?! - Reyem pegou de seu bolso um canivete suíço, dos grandes, e começou a tentar abrir uma das lâminas -
-Hmmm... Interessante. O que pretende fazer com isso, múmia?
-E-Eu vou... T-Te matar, pirralho! Assim que eu conseg--
Pulei pra cima dele, jogando-o alguns passos para trás e fazendo com que derrubasse o canivete no chão. Saquei meu isqueiro, olhei para ele, que agora estava mais confuso e surpreendido que antes, e abri um sorriso sádico enquanto passava minha língüa entre meus dentes e umidecia meus lábios de forma desafiadora.
Ascendi o isqueiro e parti pra cima dele, que estava petrificado tentando entender o que estava acontecendo. Seu paletó se imflamou num piscar de olhos. O velho agora estava em chamas, rolava no chão desesperadamente para tentar se livrar do fogo, mas isso só piorou a situação, pois num determinado momento, ele rolou para a poça de gasolina em que caira antes.
-Aquela dívida, assim como você, durou tempo demais, Reyem... Tempo demais...

Acendi meu último cigarro e fui para a Avenida Leste, onde Bernard me aguardava em seu escritório com um copo de café e batatas fritas amanhecidas.
Bati à sua porta e ele a abriu. Estava com os cabelos oleosos bagunçados, gravata frouxa e, além de aparentar ter acabado de acordar de um longo cochilo sobre os papéis em sua mesa, emanava um sutil cheiro de mofo dos seus "sapatos da sorte".
-Olá, Max...! - disse ele, devagar, ainda confuso por ter sido acordado pela porta às quatro e quinze da manhã -
-Me desculpe, Bernard. Mas vim buscar meu pagamento. Já me livrei do Reyem. - informei-o -
-Foi mais rápido do que o esperado.
-Eu lhe avisei que não demoraria... Acredita que o velhote nem notou que não era você? Abriu o jogo logo de cara.
-Hahahaha! - ele riu - Meu pai estava mesmo ficando louco... Velho caduco! Hehehehe...

Me levantei da velha cadeira em que havia sentado e estendi a mão para uma breve despedida. Bernard levantou-se logo em seguida e apertou minha mão com força, expressando confiança em meu trabalho pela primeira vez.
Saí do escritório enquanto vestia meu sobretudo e pegava o pacote de cigarros do bolso.

-Ah, vazio... - lembrei-me -

Em dois dias, recebi o pagamento pelo trabalho e Bernard me ligou, pedindo para que eu o encontrasse na Loja de Tortas Skiller naquela noite.
-É, parece que hoje teremos mais um "acidente"...

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Chuva Cinzenta

A velha mendiga estava agarrada a uma metade de pão suja que havia encontrado na sarjeta há alguns instantes. Suas mãos, enegrecidas pela imundice das ruas, o seguravam tão firmemente que mesmo um pão duro como aquele, se enrrugava entre seus dedos. Ela abriu sua pequena e murcha boca desdentada e, enquanto fitava o pão esbugalhando seus olhos gelatinosos, o abocanhou ligeiramente, como um cão faminto abocanha um suculento bife morno.

Caía uma fina garoa e os carros passavam rapidamente nas ruas. Um homem, razoavelmente bem vestido, passava apressado pela calçada, segurando seu chapéu, para mantê-lo na cabeça, e forçando os olhos para tentar enxergar através de seus óculos embaçados. A calçada estava quase vazia, mas era o suficiente para que ele pudesse se esbarrar com vários ombros durante o trajeto. Aquela era uma típica rua de comércio inglesa, com diversos restaurantes, bistrôs, antiqüários e floriculturas. E era numa destas lojas de flores que ele pretendia entrar. Continuava andando apressado e se esbarrando, até que enfiou o pé numa poça d'água acinzentada, molhando seu sapato de couro negro e meia perna de suas calças. -Inferno! - exclamou ele após ter dado uma pequena pausa em seu ritmo para avaliar a situação. -Ah! Tanto faz, já estou quase todo molhado mesmo... - pensou, conformado e enraivecido.

A chuva aumentara, os esbarrões agora haviam diminuído e o roçar de grarda-chuvas há milímetros de seus olhos faziam com que ele se mantivesse numa mesma linha, como um trem nos trilhos, para que não acabasse por se cegar. Uma clareira entre os guarda-chuvas apareceu alguns passos a frente e ele foi até ela, sentindo-se aliviado, parou com as mãos ajeitando o paletó e olhou para cima, admirando a estrutura de um velho e baixo prédio. Enfim havia chegado ao seu destino, a Floricultura Makiavel. Um garoto apressado vinha com sua bicicleta a toda velocidade, abrindo caminho entre os pedestres que, agora, lotavam a calçada. Passou tilintando na frente de James (o nosso protagonista), obrigando-o a dar um passo rápido para trás. Nisso, James empurrou algo com as costas. Era a velha mendiga, que agora dormia em pé, escorada no poste à frente da floricultura. James olhou para ela com um olhar assustado e partiu em direção à porta da floricultura. Pôs seus dois pés para dentro e suspirou aliviado por, enfim, ter se abrigado da chuva.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Poema Perdido

Às sombras eu irei,
Nas trevas viverei
Suas vidas de mim dependem
Seus sonhos não os defendem
Nossas forças quando unidas,
Não poderão ser destruidas

A Guerra chegará
E mais um reino cairá
Meus guerreiros sombrios derramarão
Sangue com ira,
Em gratidão
À vida eterna que lhes dei
Em troca da sede que saciei.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Trevas

O lugar estava escuro e as paredes se tornaram praticamente invisíveis. O chão e o teto se fundiam na escuridão sem fim. Comecei a andar, vagaroso e apreensivo, naquela maciez sombria. Podia sentir o ar envolta de mim, tocando cada parte do meu corpo, dei mais um passo para frente, me senti pressionado por algo que eu não conhecia, meus ombros se encolheram perto do pescoço, talvez pela ponta de medo que eu sentira repentinamente. Meu corpo estremeceu e meus olhos se arregalaram, em busca de uma rota de fuga, mas não havia nada para ser visto e, provavelmente, era um lugar fechado. Me parecia um corredor... Encostei na parede mais próxima e deslizei com minhas costas por ela até chegar à outra. Meus sentidos estavam aguçados como jamais haviam estado. Eu começara a enxergar as coisas. Então corri, não fazia idéia de pra onde estava indo, apenas deixei minhas pernas me guiarem e estendi os braços na frente do meu corpo para, eventualmente, me proteger de possíveis colisões. Virei à esquerda rapidamente, dei mais alguns passos rápidos e então parei. Estava ofegante e continuava sem saber onde estava. A pressão estranha sobre mim parecia ter ficado para trás. Apoiei minhas mãos nos joelhos e tentei regular minha respiração. Inútil. Me sentei no chão e apoiei minha cabeça na parede, fechei meus olhos e respirei fundo. Tudo estava tão calmo agora...