sábado, 11 de julho de 2009

Pesadelo

Ele olhou pelo vidro da janela mal iluminada pela noite que acabara de chegar e, por entre as árvores do bosque à sua frente, pôde ver a luz amarelada da lua que subia no céu enegrecido.
Abriu a janela e pôs sua cabeça e ombros para fora, numa tentativa de ver com mais clareza o que estava diante de seus olhos. Ajeitou os óculos e inspirou todo aquele ar calmo que ali pairava. Fitou a lua cheia que o encarava por alguns instantes, distraindo-se um pouco com a beleza daquela jovem noite e ouvindo o silêncio daquele momento.Abotoou a gola de sua camisa e enroscou sua gravata vermelho sangue envolta do colarinho, suspirou e fechou a persiana delicadamente, emendando o movimento no nó da gravata.

- Está uma bela noite hoje, não acha? - perguntou-se ao espelho, largando um leve sorriso torto para si mesmo, como quem achara algo ridículo. Saiu da frente do espelho e foi até o armário, pegou seu paletó e o vestiu. Deu alguns passos para o lado, não mais que dois ou três, e chegou à porta do apartamento. Quando estava prestes a fechar a porta de seu pequeno apartamento, quase num sobressalto, voltou e estendeu sua mão direita até a mesa de jantar para pegar o molho de chaves, com a chave do carro. Fechou a porta e trancou-a.

Desceu as escadas cantarolando uma melodia descompassada e ao mesmo tempo alegre e rouca, acompanhando o ritmo de seus sapatos nos degraus de madeira.
Ao sair pela estreita porta do curto e amarelo hall, Roger deu alguns passos até quase à esquina e então lembrou-se de que havia deixado seu carro alguns quarteirões abaixo. Tirou o paletó e o pendurou em seu ombro esquerdo, sacudindo as chaves em uma das mãos e voltando a cantarolar enquanto descia a escura rua, deixando seu apertado apartamento, num prédio antigo de três andares na rua 58, para trás.

Era mesmo uma bela noite. Fresca, agradável e principalmente silenciosa. Roger gostava do silêncio - apesar de quase sempre quebrá-lo com algum esbarrão numa mesa de centro ou cantarolando alto demais - e, definitivamente, adorava a noite. As de lua cheia eram suas preferidas. Davam-lhe energia e renovavam suas forças. Pelo menos era isso que ele costumava dizer para si mesmo.

Chegara numa parte escura da rua, no fim da ladeira, onde apenas se ouvia o som de um gato fuçando o lixo e o som de uma tv, bem baixo, que saia de uma pequena janela à sua esquerda. Ele parou um instante, observando o muro no fim daquela rua sem saída, forçando um pouco os olhos para observar além da névoa na penumbra. Embora aquele tipo de lugar não lhe agradasse, ele sempre deixava o carro ali, pois imaginava ser seguro e "escondido dos ladrões". Viu o reflexo da longínqua lua no pára-brisa de seu carro, perto do muro, e então avançou em sua direção, dando mais alguns passos.

Agora podia ouvir um leve tilintar surgindo ao longe. Ignorou-o e continuou em direção ao carro. O som se aproximara, agora podia perceber que vinha por trás. Manteve seu ritmo, respirando fundo e vestindo o paletó sem parar de andar. O som não parava e nem diminuía, apenas se aproximava, cada vez mais rápido. Foi então que, a curtos cinco passos da porta de seu carro, ele parou.
O tilintar continuou em sua direção, mais intenso do que antes, ele se virou. Para sua própria surpresa, viu que nada havia ali. O tilintar parou um instante e Roger voltou-se para o carro novamente, dando de encontro com uma mulher sorridente e muito pálida. Ele se engasgou num suspiro de medo repentino, mas soltou todo o ar com alívio ao perceber que se tratava de alguém, aparentemente, amigável.
- O-oi, moça. - disse ele de forma envergonhada.
- Suas chaves, você as deixou cair. - retrucou ela, com uma voz macia, estendendo um molho de chaves na direção dele.
Roger olhou com desconfiança para as chaves e depois olhou para trás, surpreso por não ter percebido que as tinha deixado parar trás. Pegou-as e colocou no bolso do paletó.
- Obrigado pela gentileza. disse sorrindo.
- Não tem de quê. - respondeu a mulher, colocando seus braços atrás da cintura e assentindo com a cabeça.

Roger piscou, enquanto se preparava para perguntar de onde a bela mulher havia surgido, mas quando abriu os olhos ela já não estava mais lá.
A impressão que lhe passou pela cabeça era a de que ela nunca havia estado ali, já que não conseguia pensar numa maneira tão rápida para uma pessoa desaparecer de sua frente sem que ele percebesse. Apalpou o bolso do paletó e sentiu um volume desigual, notando que as chaves que ela lhe entregara estavam mesmo ali.
- Está bem, eu devo ter passado mais tempo com os olhos fechados do que pensei... - murmurou, conformando-se.
Deu mais alguns passos e chegou à porta de seu velho e mal-tratado Mustang. Enfiou a mão no bolso da calça, pegou as chaves e enfiou a chave do carro na arranhada porta vermelha desbotada. Parou por um instante, petrificado, antes de girar a chave, movendo seu outro braço pelo paletó e chegando ao bolso do mesmo, com um volume desigual, como antes. Soltou a chave na porta e pegou o molho do bolso do paletó, olhando com estranheza para aquelas chaves reluzentes. Escolheu a chave do carro, retirou a que estava na porta e colocou esta em seu lugar.

Ela entrou, girou, e abriu a porta do carro. Roger ficou realmente surpreso, olhando para a parte da rua onde seu estranho encontro ocorrera, ainda com dúvidas de que aquilo fosse real. Franziu a testa e entrou no carro, com os dois molhos de chaves nas mãos, olhando para ambos com uma grande expressão de surpresa no rosto.
- Isso não pode estar acontecendo. Eu nem tenho cópias destas chaves! - contou ele ao vazio. Sacudiu as chaves perto dos ouvidos, com esperança de que o molho de chaves "imaginárias" não tilintasse. Mas ambos tilintaram e quando abaixou as mãos novamente, estava apenas com um dos molhos em sua posse. Ficou perplexo.
- Eu não posso estar tendo alucinações... Não é possível! Eu nunca usei drogas e não me lembro de ter comido algo estragado nos últimos dias... - raciocinou em voz alta. De fato, ele não havia comido nada estragado nos últimos três meses, depois da longa noite que passara no banheiro por ter encarado um copo de leite de cheiro duvidoso antes de se deitar. Aquilo não podia ser uma alucinação, ele tinha certeza de que tinha aberto a porta do carro com a chave que a estranha mulher lhe dera.
Escorregou no assento com suas costas e suspirou, tentando entender o que era aquilo.

Alguns minutos mais tarde, ouviu um ronco de motor e abriu os olhos. Ele estava em movimento, demorou um pouco para perceber que estava num carro que se movia em alta velocidade, mas percebeu rápido que ele estava no banco do motorista, não havia chave no contato e mais ninguém no carro.
Estava em alguma avenida, muito movimentada, e correndo na contra-mão. Se pôs sentado no banco e agarrou ao volante, tentando controlar o carro, e pisoteou inutilmente os pedais. O carro não lhe obedecia e aumentava cada vez mais a velocidade, desviando por pouco de carros e caminhões. Roger começou a gritar, desesperado, e a bater no volante, como uma criança chorona pedindo atenção insistentemente.

Num determinado momento, notou que estava descendo a rua onde havia estado quando adormecera, agora numa velocidade menor, e sem carros e caminhões por todos os lados. A rua estava vazia, como de costume, a não ser pelo fato de um homem magro e alto andando no meio dela, com cabelo longo e um paletó no ombro.
O carro estava andando bem devagar agora, quase na velocidade normal de uma pessoa à pé. Roger olhou pela janela do carro, agora conformado por ele estar se movendo sozinho, e pôde ver que o homem que andava ao seu lado, na rua, era muito parecido com alguém que ele conhecia. Estreitou os olhos e então esbugalhou-os, batendo suas costas no banco do carro e arfando, surpreso, ao ajeitar seus óculos de volta no rosto.
O homem, do lado de fora do carro, era o próprio Roger, cantarolando e desatento, como sempre. O carro passou pelo homem e Roger olhou para suas próprias mãos, tentando identificar se estava no corpo certo. Olhou pelo retrovisor e se identificou no reflexo do mesmo. Torceu seu pescoço ao olhar para traz, na busca da visão do homem na rua, mas nada encontrou. Não via nem o homem, nem a rua, nem a noite, muito menos a lua. Estava tudo branco, como uma folha de papel nova, e sua luz branca era fraca, porém agradável. Dava-lhe uma sensação de conforto.
Roger suspirou, aliviado, mesmo não entendendo o que havia se passado, mas por haver apenas um dele agora. Agarrou-se ao volante e apoiou a testa nele, fechando os olhos com força e tentando entender tudo aquilo de novo.

Então ouviu um insistente e incrivelmente irritante som de campainha, estridente, ecoando por seu cérebro e lhe deixando atordoado.
Abriu os olhos e viu o teto cinzento de seu quarto, olhou para o lado de fora da cama e se deparou com a fonte do som irritante, um relógio amarelado, marcando 5:00. Bateu nele com uma de suas mãos e então o som parou, aliviando-o da sensação atordoante. Gemeu por ser o início de um longo dia de trabalho na fábrica GOOBLES - Produtos de Limpeza, e se levantou bocejando.

Foi até o espelho do banheiro, analisar seu rosto amassado pela noite. Pegou os óculos que estavam na beira da pia e os colocou no rosto, podendo enxergar melhor seu reflexo. Tirou-os, esfregou os olhos, colocou-os de novo. Olhou para o espelho, dando duas longas piscadas e depois para seu tórax e pernas. Não conseguia acreditar no que via. Aquele não era ele, aquele homem gordinho, baixo e careca, definitivamente não podia ser ele!
Roger deu um longo grito de pavor de frente ao espelho, até seus pulmões murcharem e, então, pulou da cama, arfando, como quem volta de um profundo mergulho. Tateando seu rosto, cabeça e ombros, olhou para o relógio, que marcava 2:17 e suspirou aliviado, indo até o espelho do banheiro...